Kerouac Vs Van Gogh

Tive mais um daqueles sonhos loucos. Entrei em uma dimensão psíquica que nunca havia experimentado ou pelo menos, há muito não chegava perto. O dia não tinha sido lá muito produtivo, estava por conta apenas de curtir o frio do outono em Ozone Park. Tentei escrever alguma coisa, li umas duas ou três linhas de Proust e nenhuma ideal genial veio até mim. A única diferença para o resto dos outros dias foi que a monotonia me fez ir para a cama mais cedo. Meu corpo não estava cansado, mas sentia certo prazer ao esticar minhas costas no colchão, aquela coisa do dolorido que dá uma sensação agradável. Fiquei capitaneando meus pensamentos durante um bom tempo e de repente, no meio de um lapso ou outro, acabei por entrar em um cenário diferente do daquele quarto. Demorei um pouco para perceber que estava tendo um sonho lúcido. Pelo que eu entendo, estar consciente no mundo onírico é poder comandar certas coisas que geralmente nosso inconsciente cria. Durante muito tempo, depois que acordava, ficava imaginando que se estivesse acordado num sonho e tomando as rédeas da situação em minhas mãos, gostaria de experimentar a morte, por exemplo, para ver o que aconteceria. Assim, se de repente me lembrasse disso num sonho, tentaria pular de um prédio ou coisa parecida. Todavia, nunca consegui ter essa consciência dormindo, sempre lembrava disso só quando acordava. Bom, de qualquer forma, esse não é o meu objetivo aqui.
Estava em uma via, uma estrada de chão cercada de um campo bem bonito. Pela cor do céu, tive a certeza de não estar na América, parecia muito com o mediterrâneo. Achei aquilo um pouco confuso, pois em minha consciência, sabia que estávamos passando pelo outono, tanto aqui, quanto lá. Acho que, por pensar nisso, o céu foi se transformando e parecia que uma tempestade fudida iria cair dali um tempo. Além das nuvens pretas, um vento terrível começou a soprar, indicando uma baita chuva.
Pensei comigo, “po, bem que podia ter uma casa aqui perto” e de repente, um casebre apareceu no horizonte. Ele estava no meio de um campo de flores lindas, mas que estavam um pouco apagadas por conta do cinza que imperava no céu. Apertei o passo em direção ao local na esperança de poder me abrigar por ali. Não foi minha surpresa quando vi um homem, nem alto, nem baixo, correndo também em direção à cabana. Com uma mão o sujeito segurava seu chapéu, com a outra, uma espécie de tela de madeira.

A chuva começou a cair e fiquei espantado com o tamanho, a grossura e, principalmente, a cor das gotas. Elas não eram feitas de água pura, pareciam  misturadas com tintas. Elas batiam em meu corpo e minha roupa ficava manchada de azul, verde, rosa, amarelo. Corri com todas as minhas forças e consegui alcançar a construção. A pessoa já tinha entrado e por isso, tomei cuidado para não assustá-lo. “Olá, alguém em casa?” Sim, amigo, respondeu uma voz masculina, pode entrar e se proteger da tempestade aqui dentro. Aquilo ali parecia uma espécie de atelier, equipamentos, ferramentas, brochas, tintas, telas espalhadas. Fiquei contente e senti um ar agradável ali dentro. No final do cômodo único, o homem que havia me respondido estava a acender uma lamparina.
– Então, você é um estrangeiro?
– Sim. Quer dizer, aqui não é a América, é?
– Não, é óbvio – percebi que falávamos em francês, quando finalmente conseguiu que o fogo pegasse. Ele percebeu minha reação ao reconhecê-lo.
– O que foi estrangeiro, usou do desdém, por acaso vês uma aberração?
– Não, muito pelo contrário.
– Então, o que lhe espantou?
– Van Gogh… você é o Van Gogh. Não acredito que eu tõ na frente do Van Gogh.
– Por sinal, este é um sobrenome que já ouvi dizer, de grandes negociadores de arte. Todavia, não conheço nenhum Van Toth que viva aqui no sul.
– Vincent, falei. Abri meus braços emocionado esperando o seu abraço. Ele me olhou de forma estranha, arregalando os olhos e se afastou rapidamente. “Insisto que o senhor deve estar enganado. Em Arles não existe esse tipo de gente mais.
– Mas como não – joguei meus braços ao ar e virei meu rosto para trás em uma expressão de descontemanto bem dramática. Olhe você, viro o meu corpo para o breu e faço como se olhasse para a minha platéia, como se eu estivesse em um espetáculo: Vincent Van Gogh, o maior pintor de todos os tempos, relegado ao anonimato por mero capricho do Dharma. Escrevo esta última frase no ar, paro, deixo o meu discurso, admiro ingenuamente o homem manipular plantas dentro do cômodo e fico pensando que eu, naquele quarto em Ozone Park, era muito pouco diante da oportunidade de se viver na natureza, na vida selvagem. Por que não olhar para atrás e simplesmente ir para frente? Por que não interromper o circuito natural dos acontecimentos? Simples, seria se todos soubessem que viver não é nada. É um instante, um instante que acontece o tempo todo.
– Vincent nunca estaria cuidando de plantas, disse virando-se de costas pra mim. Ele gostava de cultivá-las em seu espírito, na tela. Sua paixão eram as cores, não onde elas estavam empregadas.
– Ah, pare! Chega! Eu conheço seu rosto, um pouco de sua obra e sobre sua vida quase toda. Estamos em Arles, provavelmente, entre 1888 e 1890. Deixe me ver, levante a lamparina para próximo de suas orelhas.
A tocha foi vagarosamente iluminando o seu rosto e de repente, pude ver que suas orelhas estavam até normais. Aliás, parecia que ele ainda usava algum tipo de acessório na cartilagem. Uma peça de madeira que fazia um arco, passando por um buraco, como um brinco para mulheres. “Que louco”, pensei. Estou numa dimensão do passado, junto com Van Gogh, em Arles, mas antes de sua loucura e autoflagelação. Era provável que estivesse a espera de seu camarada Gauguin, que pela história, chegaria lá por volta de outubro de 1889.
– Não, não, gesticulo com a cabeça, você está esperando seu amigo Gauguin, antes do incidente.
– Olhe, estou achando esse papo muito divertido, mas a chuva acabou e eu acho que está na hora de eu poder voltar para os meus estudos. Aqui é como um relógio, chuve em três ocasiões no ano e hoje, estamos em um desses dias. Estava a procura de enxergar uma tela sob a lente de um céu escuro, tenebroso, intimidador. Queria saber o que poderia construir com a natureza depondo ali, contra mim. Este momento em minha vida é um sonho, um sonho.
– Claro, tem razão.
– Nããão, você não entende. É a ausência, a sua insignificância – ele era realmente pirado, pensei. Você não me conhece, nunca me viu e ainda me confunde com outro. És um infâme. Irei ligar ao padre a fim de que providencie a cocheira e te leve para Chateâu Louis, lá os médicos poderão cuidar do seu estado mental.
Já estava cansado daquela paranóia de quem não quer ser descoberto. “Me mostra um quadro seu!?” Ele vasculhou em uma pilha de panos – a luz já havia voltado e as janelas podiam ser abertas, pois não tínhamos mais a chuva. Achei, avisou. Quando pude ver a obra fiquei mais do que estupefado. Era o próprio retrato, o auto-retrato de Vincent: seus cabelos longos, sua tez morena, seus olhos escuros… não, aquele homem não era Van Gogh… era Gauguin!

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