Kerouac Vs Corso

Dezembro tomava Ozone Park melancolicamente. As árvores já apresentavam a habitual solidão esbranquiçada, seca e gelada do bairro de operários. As pessoas já não se cumprimentavam, afinal o inverno estava tão rigoroso e o vento tão impertinente que era preciso vestir seis, sete peças grossas de roupa para não preferir estar morto e enterrado. No caminho de volta ao meu apartamento, passando em frente ao All´s, vi acompanhado de uma garrafa de vodka, Gregory Corso. O homem sujo dos Bálcãs tinha uma cara um pouco desgostosa e num piscar de olhos, em uma abertura dada pelo meu olhar, ele começou seu discurso infinito sobre a liberdade humana:

– Jack, você sabe em quais circunstâncias um bom filho pode fazer mal ao seu velho pai?

– Na minha ou na sua moral, perguntei um pouco enfadado.

– Na do mundo, Jack, na do mundo…

– Ok. Na sua moral, que é a moral do mundo da verdade. Bom, vejamos… Olho para a garrafa fechada em sua mão e penso como que aquela vodka poderia me esquentar corretamente naquela tarde. Retomo sabendo exatamente o que falar: Sabe senhor Gregor Samsa – ele adora quando o confundo com o personagem de Kafka, um bom filho faz mal ao seu velho pai quando precisa respirar o mundo solitariamente e para ter coragem de fazer isso, perturba a vida do pai pesquisando e fazendo todas as coisas que o deixa puto e doente. Só assim, na dor do ódio do pai por seu “mal” exemplo, ele consegue se encontrar plenamente. Quando o pai se sente um educador inútil e frustrado, o filho lhe faz o maior mal possível.

Convenci Corso a continuar o papo no meu apartamento. Ele estava também à procura de um lugar menos frio para se concentrar na vodka e na loucura de seus pensamentos. Antes de entramos pela porta da frente, ele veio com uma forte teoria sobre a Espanha ser o grande lugar do mundo. Em sua encíclica, mais precisamente na parte em que fala sobre o Apocalipse, Corso me revelou naquele momento que os espanhóis tinham sido a peça fundamental do Criador na Terra, os responsáveis pela passagem da mensagem pelo mundo, o verdadeiro povo escolhido. E deu milhares de motivos loucos que só faziam sentido em sua cabeça. Por fim, tentava me convencer de que uma das provas era a quantidade de culturas diferentes que haviam sido tocadas pela Ibéria. Inclusive os países miscigenados como o México e a Argentina.

– Só um princípio divino iria conseguir entender a vida de uma forma tão simples e perfeita. Já viu Buñel, Dali? Já leu Garcia Marques, Borges, Llosa, Amado?

– Sabe que você me lembrou de uma coisa que nunca dividi com ninguém, mas sempre pensei cara, o Aleph é a verdade suprema, ele é o caminho, a luz e a vida. É ele que me faz levantar e respirar todos os dias, se não tivesse lido aquelas poucas páginas eu nunca iria me sentir satisfeito com a vida. Entrando por um ponto e saindo em todos os outros, saindo por todos e entrando num mesmo ponto.

– E dizem que ele está cego.

– Verdade?

– Tenho parentes em Buenos Aires. A família foi uma parte para o sul e outra para o norte.

Nesse instante, como um gatilho, algo parece ter me revelado a verdade, tal qual falou a Gregory Corso sobre os espanhóis.

– Samsa é isso, Samsa! Presta atenção seu pederasta inútil: Sempre existiu uma lenda de que o paraíso ficava ao ocidente. Em várias culturas, inclusive na cristã e na nórdica, era pra cá que a verdade estava escondida. Porém, os judeus acharam que a verdade estava no norte, os ingleses também, franceses idem, mas quem sabe ela está mesmo é no sul, cara! Para onde os espanhóis e portugueses rumaram.

Ele não esperou muito para exagerar na viagem:

– Quem sabe o mundo da verdade não é como o americano e o europeu querem, mas como um poder louco e divino atua, uma fé que só vi no México e nos livros desses latinos. É crer mesmo que do nada as coisas melhoram e, quando a gente faz lenha, tudo desanda. Quem sabe o Cristo vai voltar por estes povos, perdido no meio de índios, negros e brancos, pobres, sujos, mal-vistos, mas totalmente preenchidos de fé e esperança. Um verdadeiro aleph messiânico, capaz de compreender os sentimentos e as emoções de qualquer cultura já produzida.

Dou uma golada um pouco mais forte que me faz soluçar no exato momento em que dizia à Gregory: Tomara, meu velho, tomara! E ainda pensei: “será que a gente terá saco para esperar esse moleque nascer?” E na minha cabeça, uma voz com sotaque latino me dizia: tomara, meu velho, tomara!

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