A estrada sem fim



joao pinheiroIlustração João Pinheiro

             Jean-Paul Sartre escreveu em A imaginação que uma folha em branco conserva sua autonomia enquanto não é preenchida. Qualquer signo inserido já seria o suficiente para degenerar uma suposta independência e inércia. A interferência não condiciona a “nova” ideia a um aprisionamento, mas sim a uma abertura para outras composições e vivências – seja pela arqueologia de seu conteúdo, pelo afeto causado no outro, mas também pelas possibilidades de recriação, de adaptação, e mesmo de profanação. Por isso, a partir do momento em que se preenche o espaço com qualquer tipo de criação, o produto disso, sua obra, não está isento de ser utilizado e distribuído, em partes e fragmentos, em outras construções.

Há pelo menos três décadas – de forma mais intensa –, parte da poética artística produzida se ocupa em interpretar, reproduzir, reexpor ou mesmo se utilizar de produtos culturais e também de poéticas de terceiros. São artistas que selecionam e inserem objetos culturais já formados, dados anteriormente por outros, em novos contextos.

O artista contemporâneo deixou de compor e passou a programar formas, utilizando-se de dados, recobrando referências, fazendo analogias atemporais, e não mais se ocupa apenas da degeneração de um elemento bruto, como a modelação de uma argila ou o preenchimento de uma tela em branco. Esses “programadores” supõem o saber como um gatilho de invenção de novos itinerários dentro do escopo cultural pré-construído. Eles produzem caminhos originais entre os signos já dados e consideram a cultura como o quadro de uma narrativa que permite projetar novos enredos por meio de suas obras – ou programas.

A criação se mostra como um espaço para manobras, um portal para dimensões atemporais, um gerador de atividades. Estamos no tempo da bricolagem de espíritos, na época da navegação em camadas radiais de signos que se recompõem na inserção, adaptação e cisão de formas e propósitos já existentes.

Este projeto dedicado à memória beatnik teve início na blogosfera em meados de abril de 2008. Seus primeiros 27 capítulos foram postados originalmente em Indies.blog.com. Desde novembro de 2009, o projeto está baseado no domínio JacKerouac.wordpress.com – baixe Kerouac Versus – Joao Paulo de Oliveira.

Let it Beatnik tem início como uma celebração da vida e da obra de Kerouac e, também, como uma tentativa de expansão (interpretação) de suas ideias, pensamentos e escrita. O primeiro passo se chama “Versus” – grafada no título desta presente obracomoVs. Nela, o propósito seria – pela leitura e pelo estudo do estilo, das temáticas e do comportamento biográfico do escritor –criar ambientação e verossimilhança suficientes para que o interlocutor tenha a impressão de estar em contato com textos escritos pelo próprio Kerouac, como se fossem autobiográficos – a marca desse autor estadunidense.

Kerouac Vs se traduz em encontros escritos em primeira pessoa, sob uma possível ótica de Jack Kerouac, narrando seu envolvimento subjetivo, onírico e material com pessoas de seu convívio e alguns avatares da cultura ocidental, principalmente os que contribuíram para a construção do imaginário artístico e cultural a partir da década de 1940.

A proposta foi buscar nas biografias de Kerouac e dos demais personagens, situações, dilemas e embates que pudessem ser colocados sob a forma de diálogos ou divagações pessoais. Uma tentativa de um texto recheado com signos que se remetessem aos contextos vividos por Kerouac, e que isso não incomodasse o leitor – fluísse sem parecer fake. A intenção foi atestar Kerouac.

Entretanto, muito mais do que uma releitura do outro, Kerouac Vs é uma poética pessoal que se manifesta numa espécie de exercício artístico, imaginativo e filosófico sobre a vida. Os textos são subterfúgios para a fruição dos pensamentos e conceitos que, em boa parte, também se referem ao extrato de Jack Kerouac e de seus interlocutores. O gatilho é dado pela vida cotidiana e pela leitura de seus escritos e dos escritos de seus biógrafos. Essa relação não se estabelece de Kerouac para os textos, mas do imaginário do autor para esses, recortando e colando referências, preenchendo e deixando lacunas, modelando ou tecendo impressões, mas também informando sobre julgamentos feitos antes, durante e depois de sua vida.

Kerouac Vs é atemporal em relação à biografia de Kerouac, não seguindo racionalmente uma ordem cronológica que date sistematicamente os encontros. Seu agrupamento se realiza de forma espontânea, surgindo em cada capítulo uma nova imaginação vivida no contato com a obra, pesquisas em diários, biografias de Kerouac, nos livros de outros beatniks, por seus comentadores, nos jornais da época e nas tramas e informações fornecidas hoje em dia, na internet, por fãs e estudiosos do autor. A série se teceu numa rede de referências buscadas – além da pesquisa em literatura, nas artes, na filosofia, na música e no comportamento humano que tipicamente transcende a escala temporal e se ocupa também do sonho, do inconsciente e das autoimagens como campo de construção de narrativas que tendem à revolução.

João Paulo de Oliveira