Kerouac Vs Rothko

Nos anos 50 o mundo estava mudando e nem todo mundo sabia disso. Era o jazz explodindo em novas formações, o consumo se tornando lei, a TV e tudo mais transformando a vidinha fácil do interior em uma rotina de trabalho e fumaça. Os carros ficavam cada vez mais barulhentos e as garotas cada vez mais espertas e, por isso, faziam as coisas alucinarem na frente de qualquer um. Ser reconhecido se tornou condição para se existir na América e eu queria muito ser alguém. Lutei contra as minhas angústias depressivas e passei um bom tempo batendo com a cara na parede. Continuar lendo “Kerouac Vs Rothko”

Kerouac Vs Pollock

Já era tarde da noite e Lee insistia para que continuássemos em nossa bebedeira alucinada de três dias. Eu não conseguia mais distinguir entre o que era verdade e o que não era mentira, minha cabeça estava intoxicada demais para querer conceber a realidade das coisas e por isso, meu corpo era guiado por um pavio curto de energia que não me deixava capotar. Jackson parece ter percebido a minha confusão e prometeu contar uma historinha para me fazer dormir tranquilo. Continuar lendo “Kerouac Vs Pollock”

Kerouac Vs Morrison

A nossa cabeça é completamente caótica, uma enorme pilha de contradições. Tem dia em que acordamos e achamos tudo bonito, sublime, qualquer aporrinhação é relevada com um sorriso, até mesmo os garotos chatos da rua são apenas meninos se divertindo com o gato. Todavia, existem aqueles dias em que parece que Deus pregou uma tacha descendo dentro da nossa cabeça. Os olhos ficam quentes e qualquer distúrbio à individualidade ou vontade é motivo para mandar todo mundo se danar. Até mesmo em ocasiões favoráveis ao sujeito, quem acorda assim acaba arrumando confusão. Continuar lendo “Kerouac Vs Morrison”

Kerouac Vs Bukowski

Na América, quando você acha que é o único que está percebendo alguma coisa, se sente como se fosse um rei. As mulheres deixam de ser misteriosas, as ruas são iluminadas por cada passada que damos e qualquer fodão que aparece na sua frente se transforma num verdadeiro otário. Todavia, quando você descobre que tem um monte de maluco pensando da mesma forma, de duas uma, ou você pira de vez e se entrega ao deserto, ou então se alia a eles. Continuar lendo “Kerouac Vs Bukowski”

Kerouac Vs King Jr.

Eis que um negro forte vem andando em minha direção e parece furioso. Suas passadas são largas, ele está a mais de cem metros da mesa que eu ocupo. Vem concentrado, cabeça baixa e o tempo toda sendo jogada para um lado e para outro, grandes passadas, pisadas fortes. E vem dizendo consigo mesmo algumas palavras, frases, salmos em voz baixa e focada. Eu estou bêbado e solitário em um canto do Brooklin, um buraco freqüentado por negros e latinos, o lugar ideal para quem ainda curte a parada de verdade. A vida por aqui não é mais beatífica como antes, precisamos ficar descobrindo momentos como esse, lugares como o Moe´s ou pardieiros ainda mais obscuros, onde a luz não penetra confortavelmente – eis a busca beat, flor de lótus no lamaçal. Continuar lendo “Kerouac Vs King Jr.”

Kerouac Vs Watts

Estávamos de mudança. Deus havia nos permitido encontrar um novo caminho para a nossa vida. Meu pai, combalido e num estágio avançado da doença, conseguiu um empréstimo com um parente e esperávamos o caminhão Ford de Ned Sander parar na frente da nossa casa. Íamos saindo de Lowell, deixando para trás cerca de mais de duzentos anos de história. Entretanto, a pobreza corrói o espírito e transforma o corpo em um lar de desespero. O homem falido deixa os hábitos e a sujeira ocupa suas feições. A barba cresce, os olhos passam a procurar o vazio, a coluna arria. Era outubro e o outono abriu meu coração, jorrando lágrimas de palavras sobre a tábua da vida. Continuar lendo “Kerouac Vs Watts”

Kerouac Vs Simone

Já estava de saco cheio daquilo tudo – família reunida, todo mundo fingindo ser feliz, parentes que não se cumprimentam, agora se olham como se nada tivesse ocorrido (na verdade, são tios que olham as pernas das sobrinhas e primos que combinam sacanagens com seus sorrisos), uma verdadeira depressão de natal. Na minha casa sempre foi diferente, somos católicos onde a maioria sempre foi protestante ou judeu. Para nós, o natal simbolizava a desgraça que nossa sociedade havia feito consigo mesma ao matar o Escolhido. Ficávamos ouvindo o Papa rezar do Vaticano e torcendo logo pela volta do Cordeiro, não aguentávamos mais esse mundo de perversões e maldades. Continuar lendo “Kerouac Vs Simone”

Kerouac Vs Hemingway

Sou o filho maldito de uma geração perdida, cheia de riquezas plásticas e efêmeras. Enquanto todos se importavam, ela não estava nem aí. Enquanto todos queriam a paz, os fodidos sonhavam com a desordem e a guerra. Mas não sou eu o anticristo, aquele que irá devastar, destruir, ruir, dissolver. Não faria esse tipo de benfeitoria. Quero que todos sofram pela própria fé. Eu também. O sofrimento são nossas escolhas, o pavor e o descontrole que nos sufocam nossas escolhas. A ignorância também. É ela uma víbora pronta para ser esmagada pelo explorador. Continuar lendo “Kerouac Vs Hemingway”

Kerouac Vs Burroughs

Querido Bill,

Nos últimos tempos venho evitando qualquer contato que me remeta a você. Não estou nem um pouco possesso e ainda há amor nas minhas veias congeladas. O que me afasta é a consciência de que tudo que vem acontecendo simplesmente não tem uma resposta. Somos como arqueiros que miram o infinito da noite, mas não podem alçar voo junto com suas setas. Estamos presos Bill, estamos fincados nesse maldito planeta que insiste em ficar quente e gelado, claro e escuro, amável e odioso. Sei que sua fuga desesperada da realidade é ultramente sincera e objetiva. Continuar lendo “Kerouac Vs Burroughs”

Kerouac Vs Baker

Chet, Chet, Chet… mil vezes Chet! Nunca vi algo tão louco portar tão bem a porra de um trompete alucinado feito um deus no topo da montanha mais alta da imaginação sonora. Seu cool jazz me fazia alucinar, suas frases enlouquecidas me tiravam do cérebro. Um puta mentiroso esse maldito! Um grande beatificado esse cadavérico artista das estrelas. Sua música inundou Nova York de inveja, ninguém acreditava que um branquelo banguela poderia comandar tão bem o ofício da negaiada. Davis até tentou esconder seu espanto, mas ninguém mais do que ele mesmo foi capaz de reverenciar o diabo louro do oeste. Continuar lendo “Kerouac Vs Baker”

Kerouac Vs Coltrane

Acabo de chegar em casa e estou levemente entorpecido pelo paraíso. Nova York vive um verão intenso, tudo é suor e loucura, as mulheres, os bêbados e os poetas se confraternizam pela madrugada alucinada da grande maçã, dançando o beebop, escutando os anjos entortarem a realidade em suas harpas de sopro. Minhas mãos não compreendem adequadamente os pensamentos que emergem do vale sombrio, eles escapam e voltam e dizem ao meu ouvido como se não fossem meus e, por isso, sinto-me tímido e não me importo em desenhar suas letras mortas no papel deste diário desgastado e febril.

Mas o paraíso não é marrom, nem branco ou colorido. É abstrato, efêmero e forte. Contempla a paisagem do meu espírito como se viesse do próprio atman. Laurien dorme chapada ao meu lado e o sol insiste em querer acabar com este dia que nunca deve deixar de existir. Enquanto houver saliva em minha alma irei lembrar de quando vi as trombetas celestiais entoando cânticos em favor da humanidade, em favor dos loucos que vivem fora dos hospícios oficiais e convivem com a insanidade da sociedade perfeitamente imperfeita que pintam todos os dias na TV e nos jornais, principalmente, nos jornais. Sendo mais objetivo, antes mesmo que eu me perca em devaneios, hoje, por sorte, apertei a mão de um iluminado e minha alma se tornou completa.

Laurien andava meio encucada estes dias, imagino que esteja insegura quanto a minha proposta de firmar a vida depois do Livro ser publicado – a previsão é que no máximo no outono ele já esteja nas livrarias e agora mesmo, daqui uma semana saia o prelo. Não quero ser mais um perdido apenas, quero poder sentir cócegas nos pés e respirar um saboroso café da manhã preparado por alguém que tenha dormido ao meu lado a noite inteira. Se não me ater aos motivos deste depoimento, irei esquecê-lo por completo quando acordar e meus olhos insistem em me trair. Para poder cortejá-la de uma maneira mais nobre e poética, vesti minha melhor camisa de botões e a convidei para um jantar romântico no antro da burguesia – Coach House. Gastei várias saídas em menos de 2 horas de uma vida que, no fundo ou no raso, não penso em ter. Foi bom, mas Laurien não me disse nada. Fomos embora pela Times Square felizes e vagabundeando sobre o mundo e as coisas que poderíamos fazer quando fosse um escritor de sucesso. De repente, enquanto falávamos sobre nomes eslavos para os nossos possíveis filhos, escuto meu sobrenome ser gritado no meio do trânsito leve do início da madrugada. “Hey K, venha conosco, Monk irá começar agora o show no Five Spot”. Eram Allen, Corso e mais um sujeito que provavelmente estava se metendo com eles.

Não pensamos muito e entramos logo no Buick 49. Sempre enchia muito o saco de todos dizendo que Thelonious  é o maior, o mais sincero e sensível de toda essa geração de deuses do jazz. Todavia não esperava chegar à conclusão nesta noite de que Monk não passa de um súdito na hierarquia musico-celestial. Um negrinho de olhos esbugalhados e cheio de raça comandava a adaga divina que amordaçou por mais de duas horas o meu enfermo e carente coração indisciplinado. Coltrane, John Coltrane este é o seu nome. Sei que já havia ouvido falar dele como integrante de alguns outros projetos, porém foi difícil acreditar que a perfeição não está no centro, mas ao lado. O som que enobrece seu sax tenor é destemperado e perfeito, breca, mas ainda assim emite melodias, é o paraíso que qualquer droga não pode me dar. Imagino que ele nunca irá lembrar do branquelo que fez questão de compará-lo a um deus egípcio, que insistiu em apertar sua mão divina. Estava em êxtase o sujeito, olhava nos meus olhos, mas enxergava de fato os próprios pensamentos e sensações – uma dádiva que tento alcançar, porém os demônios do meu karma impedem que o nirvana chegue nestas bandas. Ao menos me alegro e tento me animar para o resto com esta dose de harmonia e perfeição. Não vejo a hora de procurá-lo nas lojas de vinil. Peço a Deus e a Morpheus que me embale em sonhos suaves e contínuos, em imagens alucinadas e descontínuas da perfeição.

Bom dia, paraíso!